Intolerância cristã

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Religião, presunção e arrogância andam de mãos dadas. Há pouco, li sobre a reação de alunos cristãos do Distrito federal a aulas que propunham conhecimento mais abrangente de religiões afro-descendentes, e o repúdio à representação de imagens próprias do candomblé, que culminou no afastamento do professor. (*)
Houve certo exagero, sim, do docente, mas sigo pensando ser válido o ensino religioso nas escolas, sem que, contudo, impregne-se a cabeça do aluno com uma só vertente, seja qual for. Sigo pensando que bom é conhecê-las todas – todas quanto possível for. A educação religiosa pode ser uma poderosa ferramenta na construção de uma sociedade mais tolerante, mais inclusiva e de relacionamentos interpessoais verdadeiramente laicos.
É de extrema importância que nós, cristãos, despertemos para o fato de que a nossa verdade é verdade somente para nós, e que os que nos cercam têm o direito de percebê-la como equívoco, cerrando um ciclo de reciprocidade.
Nossa intolerância apenas gera, cada vez mais, igual intolerância por parte das religiões que há séculos reprimimos no cristão ocidente. A igreja convenientemente ignora pontos salutares da pós-modernidade como aceitação, tolerância e respeito à individualidade e ao pensamento oposto, fomentando um séqüito que se opõe de forma pertinaz a tratamentos mais igualitários na sociedade.
Seria interessante que as nossas crianças fossem municiadas de instrumentos que as possibilitassem notar que possivelmente suas famílias as instruem no cristianismo porque fomos colonizados e catequizados por um reino que se submetia a Roma. Se a história fosse outra, como foi para muitos outros povos, outra seria nossa fé, e, portanto, é preciso respeitar e bem-viver com histórias diferentes.
Meu Cristo não é um orixá, mas se meu semelhante o vir como tal, então que com ele se relacione de tal forma, seja no terreiro de candomblé ou no templo de uma denominação evangélica, porque, sim, há muitos evangélicos que, tendo feito suas oferendas, esperam receber da divindade que reverenciam os favores de exclusivo interesse que a este rogam. Não é isto parte do rito do culto afro? Qual a diferença? Os nomes? A liturgia?
Ser cristão, portanto, nada significa. Ser evangélico, ser católico nada é. Templos e terreiros têm a mesma finalidade e seus rituais religiosos por diversas vezes se confundem.
Deus não vê religião, não ouve músicas, não aplaude danças, não cabe em templos de concreto, não pode ser mensurado, domesticado, loteado ou formatado pelo homem. A humanidade não contém Deus e muito menos o esquadrinhou. Na verdade, muito pouco o compreendeu.
Sabe Deus de todas as coisas, sonda, ele, todos os corações e conhece os pensamentos. Comprou, ele, para si todas as nações, todas as raças, todos os ritos e todas as compreensões.
Acredito, sim, num só caminho, mas também em muitas formas de caminhar, e num só julgador de todos os passos e corações. Acredito na salvação do homem somente por meio do filho de Deus, seja encontrando-o nos templos ou nos terreiros. Ele é senhor das trevas e da luz e ouve clamores no mais alto dos montes e nos mais profundos abismos.
Pode ser que os intolerantes cristãos arianos tenham que curvar-se diante de um Deus negro que escolhe para si um culto com muitos atabaques e tambores.
Se a nossa sociedade conseguir que as crianças reflitam em múltiplas possibilidades, estaremos construindo um futuro mais humano, e se nós, cristãos, atentarmos para o fato de que não somos senhores de Deus, estaremos nos tornando mais parecidos com Cristo.

Igreja: legal, mas uma droga

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Converti-me em 1975.
Diria melhor se afirmasse que a partir de 1975 passei a frequentar, regularmente, uma igreja.
Experiência sobrenatural na conversão? Bom, parei de fumar naquele dia e senti um desejo imperioso de atender o chamado que o pastor fazia para que fossem à frente os que aceitavam a Jesus como Salvador e Senhor. Não, não tinha a menor ideia do que era “aceitar a Jesus” nas bases que eram apresentadas.
Se naquele dia não houvesse ido à frente, como seria minha vida, hoje? Tenho convicção de que, necessariamente, não seria pior do que é. E aqui não reclamo da vida. Deus tem sido bastante generoso comigo.
Hoje, sigo comparecendo à igreja. Não tão regularmente. Sem engajamento. Consciente de que a igreja evangélica não oferece nada de novo à sociedade. É irrelevante.
Nos últimos 35 anos, passei por todas as fases por que passam aqueles que ingressam em um sistema religioso. Entendo que vivo ótimo momento de minha vida evangélica. Posso estar enganado, mas tentarei explicar.
Meus irmãos de fé, geralmente, relacionam seus momentos mais produtivos ao início da caminhada evangélica. Sob o estrito ponto de vista da igreja local, é verdade. É tempo de paixão e ignorância. E também de muita operosidade.
O evangélico com alguns anos de estrada e que já não tem a disposição de alguns anos antes, clama, culpado, ao Senhor: “Quero voltar ao primeiro amor”. Eu, não. (O texto em Apocalipse não tem o sentido imposto a ele, mas aqui não é o melhor espaço para discutir essas filigranas.)
Quando entramos em uma igreja (os que vêm de fora, porque há os que nela foram criados) o fazemos de olhos fechados e coração arreganhado. O mínimo que esperamos encontrar é um grupo diferente daquele que deixamos para trás. Isso não acontece.
Se tenho um grande arrependimento foi o de ter deixado para trás amigos que fiz. Ninguém nos diz para abandonarmos os amigos do passado. Ao contrário, somos incentivados a evangelizá-los. Na prática, isso é impossível. Há 35 anos as programações nas igrejas eram voltadas para dentro.
Lembro-me de aos domingos, no caminho da igreja, encontrar amigos e conhecidos indo para o futebol, a praia... Oito da manhã eu estava na igreja. Depois de EBD, culto e ensaio de coro, chegava em casa às 14h, almoçava, descansava e às 17h estava de volta para só retornar ao lar pelas 23h. Durante a semana, trabalhava e estudava. Sábados sempre havia atividade na igreja. Não era desagradável. Gostava muito da agitação. Poderia, no entanto, ter distribuído melhor meu tempo. Perdi contato com amigos e família por causa disso. É o primeiro amor.
A igreja não é composta de um grupo diferente. E aqui afirmo que igreja nenhuma é. Quem está dentro diz logo para os que chegam: “Não olhe para os irmãos. O modelo é Jesus. Ele jamais o decepcionará.” Se você desprender-se do gado perceberá que sua relação tem de ser mesmo com Deus. À sua volta os santos agirão como os perdidos. Na fase da paixão, nada será percebido. O apaixonado tudo releva. É um imbecil. A esta fase da vida cristã chamam, nas igrejas evangélicas, de a do primeiro amor. Ao se livrar dela, só desejarão a ela retornar os descerebrados.
Passado o primeiro amor, a vontade é de cair fora. Se ainda não formamos vínculos com os de dentro, tomamos o caminho da rua; se ficamos, nos transformamos em cínicos.
A igreja é nosso espaço de convivência. Os amigos do passado foram esquecidos. Seus amigos, agora, estão ali. A menina que você cobiça senta-se três bancos à frente do seu. O português foi esquecido, seu idioma é o evangeliquês. O sentimento de pertencer a um grupo é muito confortável. Dentro da igreja, se somos operosos, temos prestígio. Elegem-nos para ser coordenador geral do departamento de qualquer coisa. Poder é bom, mesmo um poderzinho de nada.
Há quem pare neste estágio e nele permaneça até a morte. As estranhezas são deixadas de lado, as incoerências percebidas são varridas para um canto do cérebro.
Pouco mais da metade de minha vida evangélica, vivi neste estágio e talvez ainda estivesse nele se o acaso não me levasse, no final da década de 80, a trabalhar em uma empresa da instituição evangélica a que minha igreja pertence.
Do final da década de 80 para cá, aprendi duramente como podem ser calhordas os líderes religiosos. Há calhordice maior do que a distorção do conceito do “ungido de Deus” explorado por pastores autoritários?
Habitualmente, ia a outras igrejas ouvir pastores diversos. Participava de palestras, frequentava congressos, respeitava os “servos de Deus”. Se alguém quiser arranjar confusão comigo, nos dias de hoje, basta me convidar para este tipo de atividade. Tomei aversão.
Conheci, profissionalmente, dezenas de homens que vivem à frente de igrejas e percebi neles algumas características alarmantes: vaidade extremada, egoísmo mórbido, cupidez desenfreada, ignorância jumentina e maldade, muita maldade.
É verdade que nesses anos conheci gente admirável, mas em muito menor número do que gostaria.
Quem priva de minha intimidade, sabe que estou longe de ser modelo de qualquer coisa, mas assim como não procuro para me ensinar matemática quem sabe menos da matéria do que eu, não posso perder tempo precioso de vida dando atenção a hipócritas que só falam e não vivem.
De qualquer forma, sigo em frente e permaneço na igreja, confiante em que Deus me mostrará o sentido de todas as experiências que vivi dentro da comunidade de fé. Não desejo voltar ao primeiro amor, o da fé cega, nem ao tempo do conformismo. Quero, sim, passar a um outro estágio: o de ser parte de uma igreja relevante, sendo eu relevante, também.


Utahy Caetano
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Marcelo Belchior
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